segunda-feira, 11 de janeiro de 2010




[Conto]

Fátima

– Fátima!

Chamou Dona Lourdes pela terceira vez e não obteve resposta.

– Venha cá, menina! Onde você se meteu?

Fátima estava metida no quarto da sua irmã mais velha, debaixo da cama. Era o esconderijo perfeito, pois sua mãe, com a idade que tinha, não conseguia mais envergar o corpo para olhar lá embaixo. Talvez até conseguisse, mas depois do que aconteceu no ultimo natal, quando ela ficou entrevada na cama com dor na coluna durante seis semanas, ela jamais se atreveria a tentar.

– Encontrei ela, mamãe!

As irmãs mais velhas sempre fazem isso. Mas numa família de sete irmãos, Fátima tinha justo que ser a caçula e a principal vítima de todos os outros. Carminda segurou seu tornozelo com as duas mãos e a puxou para fora do seu esconderijo. Fátima não tinha força suficiente para resistir, eram quatro anos de diferença e experiência a mais.

– A mamãe está procurando você – disse ela com muita maldade nos olhos.

– Eu sei – lamentou Fátima.

Levantando-se do chão, ela foi se arrastando até a cozinha, onde Dona Lourdes passava a maior parte do dia, envolta em uma cortina de fumaça que vinha do fogão a lenha, perpetuamente aceso. Fátima nunca gostou da cozinha, porque tinha sempre muito trabalho por lá. Mas não era esse o motivo pelo qual estava se escondendo. Porque desta vez, Fátima sabia exatamente o que sua mãe queria que ela fizesse.

Na cidadezinha onde Fátima morava desde que nascera as casas eram muito distantes umas das outras. Não era como nas grandes cidades que todo mundo morava grudado e quando não havia mais espaço para os lados, construíam suas casas sobre as dos outros, o piso de um era o teto do outro. Os vizinhos mais próximos da casa de Fátima era um povo bem estranho. Sua mãe regularmente os visitava, e arrastava a pequena menina com ela, para que todos lhe apertassem as bochechas e lhe assanhassem os cabelos.

Porém, recentemente, faleceram os gêmeos, netos da velha senhora da casa, a Dona Romana. Os gêmeos tinham não mais que sete anos cada. Fazia uns três anos que a velha vivia só com os gêmeos, depois que sua última filha casara-se, e fugira com o marido para a capital, abandonando o casal de crianças aos cuidados de Dona Romana. Dizem que as duas crianças adoeceram tão logo sua mãe se foi, e Dona Romana nunca procurou um médico para tratar dos pobrezinhos, pois confiava muito na sua própria medicina caseira. O resultado de tal atitude já era esperado. O velório tinha sido há sete dias, tempo no qual a casa estivera cheia de gente, orando e cuidando da velha debilitada. Mas hoje vieram bater a porta de Dona Lourdes, e Fátima ouvira a conversa.

– Ela está muito triste. E os parentes se foram todos. Se ficar sozinha em casa, é capaz de dar fim da própria vida.

– Coitada da Romana – respondeu sua mãe.

– Talvez uma de tuas filhas possa ir dormir com ela hoje. Ao menos para que feche as portas e janelas quando anoitecer. E trocar a água do penico de manhã cedo.

– Eu entendo. Mandarei uma das minhas meninas até lá hoje, fique sossegada – sugeriu Dona Lourdes.

O restante da conversa Fátima não ficou pra escutar. Pois foi nesse instante que correu pra debaixo da cama da sua irmã.

Conformando-se com seu triste destino, Fátima entrou na cozinha e nada disse, ficou esperando sua mãe notar-lhe.

– Ah! Você está aí. Ande em se aprontar, já são quase cinco e tu hoje vais dormir na casa da Dona Romana. A velha ainda se mata de tristeza. Vá e faça companhia a pobre.

– Oh, não mamãe! Não quero dormir lá hoje, não quero dormir lá – choramingou Fátima.

– Queres que a velha se mate de tristeza? Aí a culpa vai ser tua.

– Não é justo! Porque a senhora não pede, então, para que vá Carminda?

– Vais tu, que és pequena como os netinhos que ela perdeu. Pense como vai se sentir reconfortada ao te ver. Logo ela que te gosta tanto.

– Mamã...

– Vá depressa!

Não adiantava discutir com Dona Lourdes. Quando ela decidia uma coisa, ninguém a fazia voltar atrás. Que chances tinha a pequena Fátima? Assim sendo, lá foi ela arrumar uma trouxa com sua roupa de cama e escova de dentes para levar à casa da velha, mal acreditando no seu infortúnio.

Antes de sair, sua mãe entregou-lhe ainda, alguns pães com queijo para servir de jantar e duas maçãs de sobremesa. Fátima caminhou lentamente até a casa da Dona Romana. Era uma casinha pequena de tijolos de barro, toda coberta de lodo, com três quartos, uma cozinha minúscula, uma sala do tamanho de um vestíbulo e um banheiro à parte, do lado de fora, como se faz no interior.

Fátima bateu na porta da frente, e ninguém respondeu. Tentou força-lá, mas parece que estava trancada com ferrolho por dentro. Resolveu dar a volta. Quando passou por uma janela aberta, instintivamente olhou para dentro e viu a velha Romana estirada sobre uma cama. Parecia dormir.

Já do outro lado da casa, a porta dos fundos estava entreaberta. Fátima trancou-a ao passar. Depois caminhou direto para o quarto da velha e abriu a porta. Deu de cara com uma silhueta obscurecida que a encarava, controlando-se pra não gritar Fátima fechou os olhos com medo e permaneceu imóvel por um momento. Resolveu que deveria abrir um dos olhos para ver se a assombração ainda estava lá. Mas quando o fez, constatou que não havia assombração alguma, e a silhueta que a olhava era a sua própria, nada mais que seu reflexo num espelho na parede oposta.

Recompondo-se do susto, Fátima tirou da trouxa uma maça e levou até a cama onde a velha dormia. Olhou para o corpo imóvel, com receio de se aproximar. Deixou a maçã perto da mão dela e murmurou sem se preocupar se Dona Romana estava escutado ou não.

– Minha mãe mandou para a senhora. Está fresquinha.

Não tendo mais nada a dizer, a menina voltou para a cozinha. Estava tudo sujo e empoeirado. Havia muita louça na pia. A casa inteira fedia a mofo. Fátima puxou uma cadeira e sentou-se à velha mesa para fazer sua refeição.

Após terminar com os pães e a sua maça, ela foi para o banheiro no quintal. O banheiro não tinha teto. E enquanto estava lá fazendo suas coisas, ela observava as mangueiras que cobriam toda a vista do céu. Já era quase noite e o vento começava a balançar os galhos das árvores.

Fátima voltou para a casa. Cerrou todas as janelas. Arrastou um colchão para o quarto da velha, que ainda dormia profundamente, e deitou-se por fim perto da cama dela. As horas passaram, e tudo escureceu. Fátima não soube dizer a que horas conseguiu dormir nem que horas eram, no meio da noite, quando foi acordada de um sonho confuso por um barulho alto no telhado.

O quarto estava muito escuro, as únicas luzes que se faziam brilhar eram as que passavam pelas frestas das janelas e das telhas de barro, vindas da lua. O vento do lado de fora parecia ter aumentado com ferocidade. Os galhos das mangueiras que rodeavam a casa batiam com força no telhado e as mangas maduras caiam por todo lado causando muito barulho. Cada pancada era um susto e um salto que dava o coração da pequena criança.

Fátima puxou o lençol sobre o rosto, certificando-se de que somente seus olhinhos estavam de fora. Não movia um músculo sequer. Então ela ouviu fortes batidas na porta dos fundos. Lembrou-se, com temor, que da segunda vez que passara por ela, não trancara. As dobradiças da porta rangeram. A ventania tornou-se mais violenta a ponto de quebrar o ferrolho da janela do quarto. O vento entrou com brutalidade trazendo muitas folhas. Fátima passou o lençol sobre a cabeça inteira, cerrando os olhos com toda a força, sentindo-se um pouco mais protegida sob o lençol, pedindo a Deus para que aquela noite terminasse o quanto antes. Tapou os ouvidos para abafar o som que faziam as janelas batendo contra a parede.

Conseguiu adormecer novamente e quando acordou não sabia se o que aconteceu foi um pesadelo ou se foi real. Mas rapidamente dobrou suas coisas e embolou tudo numa trouxa mal feita. Olhou o penico da velha, estava vazio. A maçã nem fora tocada. A janela estava fechada. Fátima saiu em disparada pela porta dos fundos. O quintal estava limpo, não havia nenhuma manga no chão, nem tantas folhas como imaginara que haveria, considerando a ventania da noite anterior. Sem entender aquele mistério, ela foi embora, direto para casa, não se atrevendo a olhar para trás em nenhum momento do percurso. Mas se tivesse olhado, veria três vultos brancos que a acompanhavam, dois menorzinhos e um terceiro de postura muito curvada no meio que os levava pelas mãozinhas.

6 comentários:

  1. Pedro gostei do conto, mas acho que você deveria se ater menos em tantos detalhes. Detalhar demais faz a gente perder a vontade de ler, você fica sem material pra usara imaginação.
    Um abraço pra você!

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  2. Vlw mesmo, rsrs. vou tentar cuidar desses Detalhes, rsrsrs. Acho que to evoluindo cada vez que escrevo mais. Obrigado por ler. ABraço

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  3. Gostei. E os detalhes, continue assim. Nunca mude seu jeito de escrever.

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  4. vlw por ler e pelos comentários nesse e nos outros contos. Duas opniões muito diferentes eu tive aqui sobre os detalhes.

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  5. Detalhes não nos faz perder a vontade de ler, se o texto tiver qualidade, isso é para quem já não gosta ler [ou tem preguiça], esse é seu estilo, não mude. Detalhar facilita a vida do leitor na construção do imaginário e valoriza a obra. Continue assim. Belíssimo conto.

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  6. Obrigado, Amiga!
    Conhece essa história? tá meio distorcida... mas não é totalmente original. hehehe. Agradeço a sua mãe.

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