segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Um conto de moral

No que faço um breve relato quanto ao caráter da mocinha:

Sempre fora muito religiosa. Não se via Alriane dia de domingo, pela manhã, em outro lugar que não fosse a igreja. Naquela época, aos 16 anos, era catequista para uma turminha de crianças da pré-catequese e fazia parte do coral que embelezava as missas de domingo do povoado onde vivia. No interior do Tocantins, essa coisa de religião era levada muito a sério.

No que eu apresento o contexto histórico-geográfico:

O antigo norte de Goiás, que até o início da década de 90 era uma região formada basicamente por pequenos povoados, aldeias indígenas e comunidades quilombolas, começava a se transformar. As cidades iam se formando e a indústria chegava a galope. Os povos que aqui viviam foram de súbito engolidos por um processo de criação do estado que prometia muitas melhorias, mas somente à longo prazo, porque de início foi um verdadeiro “zebedéu”. Milhares de homens, principalmente jovens dos estados vizinhos vieram para esta região em busca de oportunidades. Em tempos da construção da capital, precisava-se de muita mão-de-obra e as terras eram distribuídas aos montes para os pioneiros.

Mas isso não é tão importante.

O que realmente importa é que com esse povo todo que aderiu ao novo estado, veio também um jovem chamado Geraldo.

No que eu apresento o peão e dou início à história:

Geraldo tinha seus 20 anos, viera numa caravana do Maranhão, junto com mais 36 outros colegas para tentar arranjar emprego numa das dezenas de construções que se espalhavam pela nova cidade. Esses homens todos, praticamente não tinham onde ficar, alguns se arranjavam pelos canteiros de obras, outros procuravam um vilarejo mais próximo de onde iam trabalhar e se hospedavam em alguma casa de família ou pensão. Naquele tempo foi um negócio lucrativo.

Na rua de Alriane mesmo, a maioria das casas serviam de hospedaria para alguns trabalhadores. Próximo ao seu povoado, estava em andamento a construção de uma barragem, nada muito grandioso, era apenas um projeto simples para desviar o curso do rio que passava próximo aonde deveria ser construída uma das maiores rodovias da nova capital. O povoado então passou a ser o principal ponto de acolhimento para os homens que trabalhavam nessa obra.

Apesar de D. Maura ter insistido muito com o marido, pai e mãe de Alriane, que receber operários como hóspede seria uma boa ideia, o velho Bento não quis nem saber de conversa.

- Não quero saber de outro macho rondando minha casa não! – dizia ele, resmungão.
Entrevado na cama, pois era já muito velho, e fumava tanto o seu cachimbo que não se esperava que vivesse muito tempo mais, S. Bento não aceitava que outro homem viesse cantar de galo no seu terreiro. D. Maura achava mesmo que ele tinha ciúmes e medo de perder sua posição de chefe da família. O fato era que com o velho adoentado, sem poder sair da cama para trabalhar, o que D. Maura arrecadava com os remédios caseiros que vendia, mal dava para alimentar a família. Via-se logo pela magreza de Alriane que naquela casa não se comia bem.

- Não, moço. Aqui não podemos receber o senhor não, vai desculpando aí. – respondeu D. Maura quando o jovem Geraldo bateu-lhe a porta à procura de acolhida.
Como o garoto insistia, uma vez que todas as outras casas ou estavam cheias, ou não recebiam ninguém, o velho Bento lá de dentro gritou:

- Mande logo esse falastrão ir arredando, Maura!

- Oh, Bento, meu filho! Não seja bruto! É só um rapaz – acudiu D. Maura, envergonhada.

- Não quero saber. Mande o vagabundo arredar! – sentenciou S. Bento, intransigente.
Alriane, atraída pela confusão, largou o arroz no fogo, que preparava para o almoço, e foi dar uma espiada no estranho. Ficou parada na porta entre a copa-cozinha e a sala. Ouviu a voz do pai, no quarto ao lado, ainda resmungando qualquer coisa. O homem à porta da sala, por trás da sua mãe, fazia um último pedido, depois abaixou a cabeça, derrotado, e foi embora. D. Maura fechou a porta e voltou para a cozinha. O arroz queimava.

Menina quando deixa o arroz queimar, no interior, não é boa coisa.

Semanas mais tarde, quando D. Maura já se conformara com a decisão do marido de não hospedar ninguém na sua casa, dava-se início no povoado os preparativos para os festejos de São João. Era tradição na comunidade. Tinha quadrilha, barraquinhas de comidas típicas da região, jogos e brincadeiras. E missa todo dia, é claro.
D. Maura vira nos festejos uma boa oportunidade de levantar um dinheirinho extra, para, pelo menos, equilibrar um pouco as despesas. Intimou a filha a passar as manhãs e as tardes que não estava ensaiando com o coral da igreja a lhe ajudar na preparação de quitutes e outro pratos para vender nos festejos. As duas construíram uma barraquinha singela, com ajuda de uns garotos da rua. O padre dera permissão para D. Maura vender suas coisas ao lado das barracas da igreja, mas só porque era uma família muito ligada às questões religiosas e porque todos sabiam que depois que o velho “arriara”, as duas mulheres têm passado por muitas necessidades.

Geraldo, depois da recusa incisiva de S. Bento, acabara por se arranjar num barracão improvisado pela empreiteira para os últimos operários que chegaram e não conseguiram nenhum alojamento. Dividia um espaço de oito metros quadrados com onze homens, dormiam em redes e comiam sentados em tijolos. Mas quando correu pelo acampamento que haveria festejo no povoado, era para lá que desciam todos os operários ao cair da noite. Geraldo ia mais cedo, para acompanhar a missa antes da parte social.

Surpreendeu-se ao ver a menina de voz doce que cantava no coral, ao lado de duas velhotas de vozes ranhetas de cantar ladainhas. Mas sua surpresa não foi maior que a de Alriane ao rever o rapaz, que o pai enxotara para longe de casa, sentado na segunda fila, acompanhando atento à cantoria e ao folheto de cânticos. Quando o padre começava a ler o seu repertório missal os olhares dos jovens se encontravam.
Depois da missa – podia ser até impressão – mas Alriane desconfiou que Geraldo só viera consumir na barraca dela e da sua mãe. Chegava-se “todo sorrisos”, e pedia a primeira coisa que via na frente. Quando não sabia o nome, apenas apontava e dizia:

- Me dê um daquele ali, moça.

E Alriane lhe passava um bocado de canjica ou de arroz doce numa cumbuca. Fora assim todas as três noites de festejos. E na última noite ele surgira, todo íntimo, com um ursinho azul na mão. Trazia como presente o objeto ganhado no jogo de tiro ao alvo.
Alriane recebeu o ursinho por baixo do balcão de vendas improvisado, para que sua mãe não notasse a estripulia, e Geraldo saiu sorridente para junto dos companheiros.
Alriane e D. Maura terminaram de guardar as panelas, recolher os lucros e seguiram a pé para casa, empurrando um carrinho-de-mão com os objetos. Passava da meia-noite. A casa estava em absoluto silêncio. Pelo visto, S. Bento não conseguira esperar acordado até que as duas voltassem, mais uma vez.

Qual nada! Estava quieto demais. Não dormia, não sonhava, nem sequer respirava.

Estava mesmo era morto, o velho.

Passado um mês da partida de S. Bento as coisas na casa de Alriane começavam a voltar ao normal. Tinham que voltar, afinal, precisavam comer todos os dias. Alriane ainda frequentava a escola, mas estava indo mal nesse último bimestre, tinha que trabalhar de babá todas as tardes e noites, mal sobrava tempo para os deveres de casa e trabalhos escolares. Era o serviço que tinha na vizinhança para moças na idade dela. Nos finais de semana, deixou a catequese e passou a dar aulas de reforço para algumas crianças em casa. Os pais das crianças não podiam pagar muito, mas já era alguma coisa.

O único momento que Alriane considerava realmente bom e pelo qual esperava a semana inteira, era o domingo: dia de ir para a igreja, assistir a missa e encontrar Geraldo. Ele fora muito gentil depois da morte do S. Bento. Fora na missa de sétimo dia e tudo, ajudara até jogar terra sobre o caixão no enterro. D. Maura simpatizava com ele, mas não dava mole para os dois. Mãe é a primeira a perceber quando a filha está enrabichada por um rapaz.

- Com essa idade não pode! De jeito nenhum! – exclamava ela, com o dedo esticado, sentada na calçada em uma cadeira de balanço, conversando, no finzinho da tarde, com as vizinhas.

As outras balançavam a cabeça apoiando energicamente.

- Não pode mesmo não...

- Tem que tomar cuidado...

- De repente acontece o pior...

No que o pior acontece:

D. Maura, pelejava, trancava a menina dentro de casa, proibia-lhe de sair à rua depois das sete da noite. Não se sabe quando foi, nem onde foi. Só se soube que quatro meses depois já se via uma leve saliência no ventre de Alriane. Depois de algumas semanas de enjôo e com a mestruação suspensa, vinha a confirmação do médico:

- Grávida.

- Grávida?!

- De três meses!

D. Maura desmaiou. Não que ela já não soubesse, mas ouvir da boca do doutor, era como uma bala no peito. O doutor, esse aparecia todo mês, mas atendia metade dos que precisavam de atendimento. Distribuía remédios, preservativos e escovas de dentes. Era um trabalho mais de orientação que de medicação. Na maioria dos casos, a medicina caseira era que resolvia os problemas daquela gente. O hospital mais próximo ficava no município vizinho. Quantos quilômetros, ninguém saberia dizer. Mas eram dois dias e uma noite de carroça para chegar na cidade.

Bom, nem preciso dizer que foi um escândalo quando a notícia se espalhou. Esperavam aquilo de qualquer uma das moças, menos de Alriane. Não ela, que era menina da igreja. O padre talvez foi o único que conseguira demonstrar-se mais complacente.

- Tudo bem, minha filha. É a vontade de Deus.

Mesmo assim, Alriane, tão tímida, não tinha mais coragem de pôr os pés na igreja. Agora que todo mundo já sabia, olhavam-na de forma diferente. Jugando-a.

- Não vou não, mãe. Todo mundo tá pensando que eu sou vadia – dizia a menina chorando, emburrada no quarto.

A mãe não sabia o que dizer, então não dizia nada. Depois do acesso que tivera no consultório do doutor aprendera a se controlar. Sentia que a situação seria muito mais complicada se não apoiasse sua filha. Outro que tentou apoiar foi o Geraldo. Do jeito que pode. Pobre Geraldo. Mal tinha onde cair morto e agora ia ser pai. Foi escorraçado várias vezes da casa de D. Maura que vinha à porta já munida com seu cabo de vassoura.

- Não volte a por os pés aqui, seu safado! – berrava a mulher, vermelha como um pimentão, tangendo o pobre para a rua. – Desavergonhado.
Nessas horas Alriane desabava a chorar. Gostava do rapaz e não o culpava por nada do que estava lhe acontecendo.

Só por volta do sétimo mês de gestação, é que D. Maura passou a permitir a entrada do pai da criança em sua casa. Ele sempre vinha com sacolas de compras, mantimentos, peças para o enxoval e outras coisas mais. Era esforçado o rapazote, todos viam. Mas não tinha grandes posses, isso era o que mais pesava. Mas como D. Maura passou a ter que trabalhar em dobro para sustentar a si, a filha e o netinho que viria – adianto logo que era menino – não se dava ao luxo de recusar a bem-vinda ajuda do genro. Já se permitia chama-lo de genro, mesmo que só para si, em seus pensamentos.
D. Maura ralou sol após sol para conseguir o que comer. Com o passar do tempo já se sentia tão fraca e cansada que não via a hora desse menino nascer.

Nasceu.

Logo que Alriane se sentiu forte o suficiente para levantar da cama, D. Maura caiu adoentada. É certo que estava velha, mas nem tanto. Talvez de tanto que trabalho, acabou envelhecendo mais rápido. Nesse tempo Geraldo já havia se mudado para a casa de Alriane. O salário que ele ganhava na empreiteira não era grande coisa mas dava pra levar a vida sem ter que passar fome. Alriane começou a lavar roupa para fora e assim eles iam vivendo.

Até que o doutor resolveu aparecer. A situação de D. Maura oscilara várias vezes. Ela chegava a sair da cama, sentia-se bem, mas depois derreava. O doutor não soube determinar o que poderia ser, apenas tinha algumas hipóteses, mas precisaria de um exame mais detalhado.

No final do mês seguinte conseguiram levar D. Maura até a cidade, para fazer uma bateria de exames completa. Coração, pressão, sangue e etc.
Os resultados, Geraldo foi buscar no mês seguinte e no terceiro mês o doutor apareceu para abri-los, examiná-los e dar seu parecer.

- Câncer.

- Câncer?!

- Mas câncer de quê, doutor? – quis saber Geraldo.

- Câncer no fígado. Muito avançado. Não sei como ela só veio se queixar de dores agora.

Na verdade, há muito tempo D. Maura sentia dores nesta região. Nesses últimos meses tivera algumas hemorragias graves; dores intensas; secreções, entre outros sintomas acusativos do câncer. Mas quem ia saber?

Bom, não quero ir rápido demais, mas nessa parte técnica eu desconheço os detalhes. No entanto, é preciso relatar aqui que D. Maura lutou muito contra o câncer. Foram três anos inteiros de tratamento, ou mais. Quase dez cirurgias e o tumor sempre vencia no final. Passou aos tratamentos mais pesados, a radioterapia e a quimioterapia. Os médicos insistiram até o final para que D. Maura permanecesse no hospital. Mas depois desse tempo, muito magra, a pele toda escura e fina como seda, a voz não passava de um sussurro, as noites em que não conseguia dormir devido as fortes dores que sentia, não há cabeça que aguente. Queria ir para casa, talvez aquele fosse seu último ano. Como seu corpo já não reagia à quimioterapia, não fazia mais sentido continuar ali.

Alriane, chorando muito, concordara em interromper o tratamento. E a viagem de volta foi muito mais dolorida, para as duas, pois voltavam sem esperanças.
D. Maura suportou alguns meses ainda, alimentando-se basicamente de leite.

Enfim se foi.

No que finalizo a história de Alriane:

Alriane sofria muito pela perda da mãe. Fora difícil se conformar com todo esse sofrimento. Mas se era para acontecer, o que ela podia fazer? Ficara dias isolada, mal saindo do quarto, somente para dar o que comer ao filho pequeno. Relembrava incessantemente todo o martírio pelo qual passara nos últimos anos. A morte repentina do pai, a gravidez indesejada, a rejeição das pessoas que conhecia, a doença da mãe, as despesas com o tratamento particular e as perdas. Tantas perdas.
Perdeu sua juventude, perdeu suas amigas, perdeu sua chance de estudar e garantir um futuro melhor. Perdeu o pai e a mãe. O que lhe restara?

Estava ficando cega! Completamente cega! Perdera muita coisa, de fato. Toda sua antiga vida se fora. Mas não estava sozinha. De jeito nenhum! Tinha uma família ainda. Uma família que a amava e que ela adorava servir.

Depois da morte do pai e a doença que inevitavelmente levara sua mãe, o que seria dela se não fosse aquelas duas criaturas que surgiram na sua vida enquanto tudo desmoronava? O que seria dela se não fosse aquele homem bom ao seu lado e aquela criança linda nos seus braços?

E a história continua, como a vida.

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