Análise do filme “Minha vida em cor de rosa” (1997), Alain Berliner
O filme europeu tem como principal
temática a sexualidade, mas que é abordada de forma delicada e comovente. Conta
a história de um garoto de sete anos chamado Ludovic que acreditava que um dia
poderia ser uma menina. Os problemas começam quando a família do garoto muda-se
para um bairro de classe média alta, onde a maioria dos vizinhos demonstra-se
de um conservadorismo exacerbado e a transgressão de gênero de Ludovic começa a
incomodá-los. Essa manifestação de contrariedade dos vizinhos a respeito do
comportamento do garoto deve-se a toda uma construção do pensamento humano
sobre o que deve ser aceito e o que deve ser repreendido.
A ideia de que um sujeito do sexo masculino não pode
manifestar uma identidade de gênero feminino é tão antiga quanto à história da civilização
humana. Desde a Grécia antiga a instituição da família foi consolidada como
única forma de vida correta e sadia. A constituição de uma família na
antiguidade foi legitimada pelo fato de que somente a união entre um homem e
uma mulher poderia gerar a vida de um novo ser, contribuindo assim para a
manutenção da pólis. Não obstante a
esse fato, tem-se o conhecimento de que muitos homens de alto nível social e
prestígio mantinham relações afetivas e até sexuais com outros homens mais
jovens, como se pode verificar há várias ocorrências na literatura. Esse
discurso de legitimidade da relação heteronormativa foi reforçado pelo advento
do cristianismo, com o qual a sodomia, relacionamento homossexual, tornou-se um
pecado mortal passível de punição severa.
A modernidade trouxe grandes avanços
e mudanças no campo epistemológico, marcos importantes como a Revolução
Industrial e o Movimento Feminista contribuíram muito para a composição de uma
nova ideia sobre a sexualidade, a mulher começou a conquistar o seu espaço no
mundo e a instituição da família aos poucos deixou de ser intocável assumindo
novos formatos e possibilidades. Em estudos modernos como os de Michel Foulcaut
(1988), Simone de Beauvoir (1949) e Judith Butler (1990) a subversão da
sexualidade é problematizada e o modelo binário dos sexos questionado, abrindo
espaço para a discussão sobre identidade e gênero.
Quando um menino de 7 anos manifesta
o desejo de se vestir com roupas de menina, e ter um cabelo grande como o de
uma menina e até sonha em casar-se com um outro menino, mesmo para as ultimas
décadas do século 20, quando o filme “Minha vida em cor de rosa” é ambientado,
seu comportamento é considerado subversivo e causa desconforto geral. A única
personagem do filme que parece respeitar a identidade de gênero de Ludovic é a
sua avó, com quem ele decide ir morar quando as coisas ficam sérias em sua
casa.
Os pais de Ludovic levam o garoto
para consultar um especialista, e é muito interessante ver como eles esperavam
que a psicóloga pudesse curar o seu filho, sem saber, entretanto, que ele não
tinha nenhuma doença. A experiência só serviu, na verdade, para fazer com que o
garoto se fechasse cada vez mais em um silêncio preocupante, tentando esconder
a sua identidade. Fica claro que ele está se forçando a parecer um pouco mais
masculino quando, na mesa do consultório, em meio a uma série de brinquedos de
meninos e de meninas, ele olha desejoso para uma boneca da personagem Pam, que
ele adorava, mas não a pega, preferindo brincar com um carrinho, para não
alarmar seus pais.
O filme também salienta a inabilidade
da escola em lidar com a personalidade de Ludovic. Quando os alunos começam a
se mostrarem agressivos para com o garoto e a professora tenta explicar a turma
que é necessário que se respeitem as diferenças dos outros, ela é interrompida
por alguém que vem retirar Ludovic da sala de aula a pedido do diretor. Os pais
são chamados à escola e a eles é dito que a escola não está preparada para
lidar com a “excentricidade” do seu filho e à essa criança é negado o direito
de frequentar aquela escola em resposta a uma petição feita pelos pais dos
outros alunos. A atitude da escola e dos pais revela como os indivíduos que
decidem subverter a normalidade sexual são expelidos dos ambientes sociais e
condenados à marginalidade de forma agressiva e excludente.
Apesar de tratar de uma dura
realidade o filme imiscua em sua narrativa certo tom onírico que são próprios
do universo infantil, além da forte influência das cores, especialmente do
rosa, que geralmente na nossa cultura é relacionada ao universo feminino. Em
alguns momentos da trama, o garoto é capaz de voar ou transportar-se para o
universo da sua personagem preferida constantemente. Pam se configura na fada
madrinha de Ludovic que, como nos contos de fada, aparece somente para ele, o
acalenta e ampara nos momentos difíceis e o proporciona a esperança de uma vida
feliz, diferente da que ele tem no presente.
“Minha vida em cor de rosa” é uma
obra belíssima e cativante, capaz de tocar a parte mais sensível das nossas
emoções e passar uma mensagem de respeito e de amor e mesmo com uma trajetória
tão triste, o final do filme deixa entrever uma possibilidade de que Ludovic
venha a ser feliz, conquistando primeiramente a aceitação dos pais, para depois
ir em busca do respeito dos amigos e vizinhos em um novo bairro, um novo mundo.
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