Agora,
precisamos de um local. Vamos colocar este corpo em algum lugar
inusitado. No meio da rua? Não. Na sala de um apartamento? Não,
não. Já sei! Em um grande salão de festas. O piso branco, encerado
e o sangue vermelho empoçando sob o cadáver. Mas, espere, havia
mais gente. Na verdade, havia muita gente ao redor do corpo. Mulheres
maquiadas e vestidas com longas sedas escarlates e negras, homens
escovados trajando duros ternos branco e grafite. Todos curiosos e
assustados, perguntavam-se o que teria acontecido, como aquela
senhora poderia ter morrido.
Antes de
qualquer outra coisa, vamos falar um pouco sobre aquela mulher. Ela
devia ter um nome. Algo como, vejamos, Griselda. Talvez na metade do
caminho entre os quarenta e os cinquenta; divorciada; mãe. Dois ou
três filhos? Uma filha. Mas o que uma mulher como esta fazia em uma
festa para ser morta? Uma festa não, um baile. Melhor assim, mais
distinto. E não era qualquer tipo de baile, era um baile de
casamento. Alguém resolvera casar-se no dia da morte daquela mulher.
Mas isso não importa, os noivos só vieram tomar conhecimento do
acontecido muito depois de a polícia ter chegado.
Quem
chamou a polícia? Ora! A mãe da noiva. Só ela poderia estar em
todos os lugares da festa ao mesmo tempo, cuidando de todos os
detalhes para que nada desse errado. Mas algo deu errado. Um infeliz
resolvera matar aquela velha bem ali no meio do salão.
Afastem-se,
afastem-se! Alguém gritava. Mas o que todos queriam era aproximar-se
e saber quem era que morria. Afastem-se, afastem-se! Gritou a
polícia. Fazer o quê? É afastar, deixar os homens trabalharem. E
trabalharam rápido. Meia hora depois de o primeiro grito ter soado e
a música parado repentinamente, um lençol branco já cobria o
pálido defunto estirado no chão e meia dúzia de investigadores
interrogavam aos grupos as pessoas que permaneceram presentes no
baile. Naquele momento, algumas viaturas rondavam o quarteirão em
busca de qualquer movimento suspeito.
Por
falar em suspeito, precisamos arranjar alguns suspeitos. Não há
mistério sem suspeitos. Talvez o homem que se esgueirava nas sombras
das árvores na fria madrugada, olhando vez por outra para a rua
vazia, apressado em se afastar dali. Ou que tal jovem moça de
vestido rosa grená que de longe observava o desenrolar do caso, sem
conversar com ninguém, sem se aproximar, e que mentira o próprio
nome para a polícia? Ou então o velhote que esteve quase todo o
tempo, desde que o baile começara, encostado a mesa de coquetéis.
O salão
começou a esvaziar-se. Os jovens amigos do noivo foram para algum
bar, para aproveitar o resto da noite. As jovens amigas da noiva
correram para casa, para espalhar a notícia do extraordinário caso
do baile. E os velhos foram dormir.
Menos
um. O velhote dos coquetéis, ex-marido de Griselda, atravessou o
salão e foi direto para onde estava a moça de vestido rosa grená e
trocou sussurradas palavras com ela. A moça assentiu e acompanhou o
pai, passando bem pertinho de onde o corpo de sua mãe ainda jazia,
imóvel. Entraram
no carro e a moça dirigiu direto para a casa do irmão. Comunicou a
morte de sua mãe e o rapaz não demonstrou nenhum pesar. Também era
capaz de deduzir o que teria acontecido.
Neste
momento, é preciso contar o que aconteceu pouco antes de Griselda
ser brutalmente perfurada e rasgada por um punhal incrivelmente
afiado.
Um rapaz
de vinte e poucos anos atravessou o salão diretamente para onde a
Griselda estava, abandonada em um canto pelas amigas matronas, com
sono e cansada de esperar por sua carona. O rapaz
vestia preto e foi tão simpático quanto ela jamais podia ter
esperado de alguém tão jovem. Mas não foi a sua simpatia que
convenceu Griselda a abandonar o seu confortável assento e
constranger a si mesma para uma dança, foi a incrível semelhança
com um certo homem do seu passado que a levou àquilo. Um passado
anterior aos filhos do seu casamento, um passado anterior aos votos
de lealdade e até que a morte os separe.
A música
tocou lenta e interminável, durou até a morte, sem dor nem medo.
Ela,
entregue nas mãos do filho que rejeitara quando jovem. Nos tempos em
que engravidar moça, solteira, envergonhava a mais pobre das
famílias. Aceitou, passivamente, que o fantasma do seu passado, em
uma única e cruel apunhalada, terminasse com a sua vida e o seu
sofrimento.
Griselda
vivera anos angustiosos tentando reencontrar o filho entre os becos
carcomidos, entre as lixeiras fedorentas e cheias de vida, de ratos,
de formigas. Mas fora o filho quem a reencontrara para travarem a
última batalha das suas vidas. Ela não poderia ser feliz enquanto
ele quisesse fazer parte da sua, ele não poderia viver enquanto ela
fosse feliz. Matou-a. Sem pesar, sem vacilar, sem constrangimento.
Como ela o havia matado em seu colo. Dançou com a mãe e tirou-lhe a
vida como há muitos anos atrás ela lhe havia tirado.
A
polícia nunca descobrirá estas verdades. A família desertora de
Griselda não sentirá falta da louca, histérica, esquizofrênica. E
ninguém nunca desconfiará do filho ilegítimo que por anos ela
somente visitara nos sonhos e nos delírios da febre. Apenas
eu que vou esquivando-me pelas sombras destas árvores nesta fria
madrugada e tu, adorado leitor, sabemos agora a verdade. Cala-te.
Pedro Paiva
Pedro Paiva
Amei Pedro. Sua perspicácia de formar a narrativa e conjecturar com os elementos ficcionais é incrível. Estarei por aqui observando de perto suas obras. Continue. Isso é muito gostoso.
ResponderExcluirobrigado por participar Boucher! Abraçoo
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